É a hora em que essa sensação indescritível que já se estende por mais de 3 semanas fica ainda pior. É a hora em que o Miro me ligava todos os dias. Não importava se o dia dele tinha sido bom ou péssimo, o telefone ou o Skype sempre tocavam às 10 e por algum tempo eu conseguia esquecer da vida e do trabalho e de todo o resto.
Mas aí eu penso no Gastão e me sinto a pessoa mais egoísta do mundo. Se esse vazio e esse sentimento de impotência que não vão embora desde o fim de semana em Maués já estão beirando o insuportável, não consigo nem começar a calcular o que o Gastão está sentindo. Como se as coisas não pudesse ficar piores, ele foi mandado embora. Nunca em todo esse tempo que a gente se conhece eu tinha visto o Gastão tão para baixo, mas, mesmo assim, ele não se deixa abater. Fica dia e noite ligando para pessoas que poderiam ter tido contato com o Miro nesses dias, olhando para tudo aquilo que ficou para trás no laboratório em Maués... E hoje ele veio em casa para me mostrar as traduções das cartas do Tomas Hardenberg que vocês postaram no Zona Incerta. E eu insisto que ele precisa descansar, mas não adianta.
"E aí? O que você acha disso tudo?", ele perguntou, depois de entornar duas xícaras e meia de café preto enquanto eu terminava de ler os papéis impressos.
"Eu acho que as pessoas que conseguiram quebrar esse código deveriam colocar isso no currículo".
"Sério. De um ponto de vista antropológico...", ele disse, naquele tom de quem nunca entendeu muito bem o que afinal eu faço da vida.
"Bom, é de longe uma das coisas mais estranhas que eu já li. Seja quem for esse Hardenberg, ele realmente tinha problemas. Não acho que um ponto de vista antropológico pode ajudar muito, não. Ele sofria de algum distúrbio clínico, isso sim."
"E...?"
"E... Era letrado. Rituais de mumificação, o Apocalipse, Fausto, a Divina Comédia... E esse trecho sobre o fauno e o cavalo, me lembra aquela pintura do Fuselli."
"É", ele começou, "Mas nada disso parece ter a ver com as pessoas com quem ele devia estar envolvido. Quer dizer, ele menciona 'eles' em vários momentos, e fala algo sobre a escuridão dominando uma sociedade... Não parece que ele se refere à sociedade como um todo."
"Não, talvez seja sim. Supondo que esses relatos são do final do final dos anos 30 ou começo dos 40, faria todo sentido, com os regimes fascistas ganhando força e tudo o mais."
Mas ele parecia disposto a me convencer de outra coisa.
"Tá, mas a gente não pode esquecer os postais", ele disse. "Pra mim eles mostram claramente lugares onde o Hardenberg esteve procurando por alguma coisa. Ou registros sobre alguma coisa. Em arquivos, bibliotecas, em incunábulos, como essa outra carta diz."
"É, mas o quê?"
"Pensa só. Se ele estava sofrendo com essas alucinações... Ele era químico, mas também devia pesquisar plantas..."
"Uma cura?", eu arrisquei.
"Faz sentido, não faz?"
"É, mas uma cura para quê?"
"Não sei. Mas ele não era o único que estava atrás disso. Talvez 'eles' sejam os tais 'Guardiões' de quem ele fala numa das cartas."
Eu olhei desconfiada e resolvi chegar logo onde ele queria.
"Você acha que tem algum tipo de sociedade secreta no meio dessa história", eu disse.
Ele esboçou um sorriso.
"E você acha que o Miro se envolveu com eles", eu acrescentei.
"O que você acha?"
"Eu acho que você precisa dormir", eu disse, tirando o bule de café e a xícara dele de cima da mesa e levando para a cozinha.
"Pensa, Olívia", insistiu ele. "A carta de tarô, o telefonema que você recebeu... Não é uma coisa normal".
"Não, não é", eu disse, voltando para a sala e já um pouco impaciente. "Nada parece normal desde que o Miro encontrou essa caixa, mas a gente também não precisa começar a ver um enigma em todo lugar e perder a noção da realidade. Você está sendo o seu irmão agora."
Me arrependi do que eu falei no milésimo de segundo seguinte, mas já tinha saído. Nós dois ficamos em silêncio por um tempo. Eu sentei no sofá, ele soltou um suspiro.
"Você não me falou por que vocês terminaram afinal.", ele falou.
Então eu contei por alto das brigas por telefone, que são as mais ingratas. E da dificuldade em manter um relacionamento à distância por tanto tempo, e do fato de ele não conseguir mais conversar comigo. Ou não querer.
"Alguma coisa mudou depois que o Miro achou esses documentos. Ele mudou."
O Gastão me ouvia em silêncio. De repente, como se toda a carga das últimas semanas se desprendesse ali de dentro e viesse à tona de uma vez, ele largou toda aquela necessidade equivocada de ter que se manter firme do meu lado, e desabou. Foi a primeira vez que eu vi ele chorar. Eu levante e o abracei, e disse que era exatamente o que ele estava precisando naquele momento, o que era a mais pura verdade.
quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007
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Um comentário:
Ai moça... Deve estar sendo barra pra ele. Que bom que ao menos ele tem você.
Vamos tentar dar um foco maior às 'investigações' por aqui. Começaram minhas aulas, tenho andado distraído, impaci... ooops... já escreveram isso.... bom. Fato é que ando relapso.
Beijos e cuida do Gastão que o cara vai pirar!
Toad
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